Guest-post da minha mãe.
Trabalho para o mesmo patrão há mais de 20 anos. Sou professora.
Na altura em que comecei, havia algumas vantagens e desvantagens na profissão.
Em primeiro lugar, o trabalho garantia-me uma boa dose de autonomia. Confiavam‑me uma tarefa de responsabilidade, mas quase metade do meu horário poderia ser cumprido fora do local de trabalho, no momento e ao ritmo que eu determinasse. Mesmo na parte a cumprir no local, eu desempenharia as minhas funções sem interferência nem supervisão de ninguém.
No entanto, a minha competência podia, a qualquer momento, ser posta em cheque. De facto era-o, constantemente, pois os jovens são naturalmente críticos e têm uma memória terrível, detectando todas as pequenas incoerências que surgem quando se tem de simplificar conceitos complexos.
Por outro lado, a qualidade do meu trabalho era sempre fácil de avaliar pelos materiais de apoio às aulas que eu produzia, pelas provas de avaliação que elaborava e aplicava, pelos conhecimentos que os meus alunos mostravam quando, em anos seguintes, passavam a ser alunos de colegas. E periodicamente eu tinha de declarar, publicamente, qual a matéria leccionada e, se me atrasasse em relação aos colegas, teria de explicar porquê.
Em certas alturas do ano, havia mais trabalho e não chegavam as horas de um horário normal de trabalho. Noutras alturas, corriam as semanas de rotina complexa sem que déssemos por isso.
Quando comecei, o meu patrão prometeu-me que depois de 36 anos de trabalho (mais de uma vida, para quem tem 23 de idade) eu teria direito ao descanso da reforma. Entretanto, o meu horário inicial de 22 horas de aulas seria progressivamente reduzido, sendo a primeira redução de 2 horas logo após 5 anos de trabalho.
Se exercesse outros cargos para além de leccionar, por exemplo Director de Turma, coordenador pedagógico de uma disciplina (Delegado de Grupo) ou Director de Instalações (responsável por um espaço, como um ginásio ou um laboratório) seriam acompanhados da redução de algumas dessas horas.
Claro que, ao contrário dos outros Senhores Doutores do país, eu não teria um gabinete alcatifado e com ar condicionado onde trabalhar em sossego, nem uma secretária com todos os meus materiais de trabalho onde me refugiar durante as horas, sempre certas, do meu horário. Pelo contrário, teria de trabalhar na sala que me calhasse, provavelmente quase sempre de pé, cumprindo, em cada ano – em cada altura do ano – o horário que me fosse distribuído e transportando comigo todos os materiais necessários, os quais pagaria do meu bolso. E não poderia ausentar-me por cinco minutos para ir tomar café…
Teria de cumprir o meu horário com rigor, todos os dias, pois qualquer atraso superior a 5 minutos na chegada à sala de aula poderia resultar numa falta. E isto, 4, 5 ou 6 vezes por dia. Todos sabemos quanto custa cumprir, um dia, um horário rigoroso… Os alunos dos Exames Nacionais têm uma tolerância de 15 minutos exactamente porque o exame tem de começar à hora certa!
Em contrapartida, os professores tinham alguns dias extra de folga no Natal, no Carnaval e na Páscoa, para recuperarem desta rotina desgastante.
E quando eu comecei a trabalhar estava em vigor o célebre “artigo 4.º” que nos permitia faltar duas vezes por mês por conta do período de férias, o qual, é claro, tem de ser gozado pelos professores durante o Verão e nunca noutra altura.
Nesse tempo, o meu patrão fazia contas simples: considerava-se que cada hora de aula representava, para o professor, outra meia hora de trabalho de planeamento e preparação (incluindo avaliação). Isto totalizava 33 horas de trabalho por semana, às quais se adicionavam as despendidas em reuniões de professores, para aferir critérios, etc. Para o meu patrão, o horário de 22 horas de aulas semanais equivalia portanto às 35 horas semanais dos outros Senhores Doutores do país.
Entretanto, para o meu patrão 1 hora de aula tinha de facto 50 minutos, pois havia 10 minutos de intervalo para os professores arrumarem a suas coisas, abandonarem a sala, irem à sala de professores, à casa de banho, tomar um café, resolver qualquer pequeno problema, reunir o material e comparecer na sala para a aula seguinte.
Mas estes tempos já lá vão. O meu patrão também.
Quando eu completei quatro anos de serviço, mais coisa, menos coisa, entrou em vigor o Estatuto da Carreira Docente (ECD). Este acabava com o “artigo 4.º”. A partir daí, só poderíamos faltar 12 vezes por ano por conta das férias. Por outro lado, a progressão na carreira passou a depender de créditos obtidos em acções de formação, que na sua maioria teriam de ser fora das horas de aula, e da elaboração de um relatório sobre a nossa actividade.
Até aqui não me pareceu demasiado mau. Já na altura a experiência me dizia que era demasiado faltar duas vezes por mês (alguns “professores” faziam-no de forma sistemática) e que a formação profissional faz muita falta.
Mas a redução de horário a que eu teria direito aos cinco anos de serviço (daí a 1 ano) passou a ser aos 40 anos de idade (Art. 79.º do ECD), ou seja, daí a 12 anos, quando eu já teria 17 anos de serviço. Isto obviamente não me agradou, mas sobrevivi.
Com o passar do tempo, o meu patrão foi mudando cada vez mais.
Apareceram novas tarefas para os professores. Agora era-nos exigida a elaboração de exames. Será preciso dizer que esta (perdoem-me) “competência” nunca fez parte nem da nossa formação inicial nem de qualquer plano de formação de que eu tivesse conhecimento? Claro que não é preciso!
Depois surgiu o celebérrimo Decreto-lei 319. A partir daí os professores tiveram de passar a saber como ensinar e como avaliar alunos com necessidades educativas especiais. Mais uma vez não é preciso dizer que não tive qualquer formação adicional para isso… E passámos a ter de elaborar, muitas vezes, provas de avaliação e de exame especialmente adaptadas às características de cada um destes alunos.
Entretanto, mudou a lei também no que diz respeito às sanções disciplinares. E os professores de repente tiveram também de saber organizar processos semelhantes aos dos tribunais, para poder castigar qualquer aluno cujo comportamento fosse menos correcto. Felizmente ao menos essa lei já foi substituída por outra bem mais razoável!
Surgiu também a “necessidade” de estender a duração do ano lectivo e o tempo que os alunos passam na escola. Assim o Estado escusa de se preocupar com o necessário apoio que as famílias com crianças pequenas tanto precisam.
Quanto aos mais crescidinhos, a escola deve ocupá-los o mais possível porque como os portugueses cada vez menos educam os filhos, não os podem deixar sozinhos em casa, a gerirem o seu próprio tempo e a assumirem as suas responsabilidades na execução das suas tarefas escolares (refiro-me a jovens com 12, 13, 14… anos). Mesmo no Ensino Secundário muitos pais actualmente querem que os professores lhes tomem conta dos filhos e os mantenham na escola!
(Não se iluda este problema dizendo que a escola deve proporcionar aos seus alunos os meios de aprendizagem de que muitos não dispõem em casa. Não é mantendo todos os alunos na escola que proporcionamos a alguns esse apoio. É mantendo boas bibliotecas/salas de estudo, etc., com um número de utilizadores adequado e não excessivo, que damos a esses alguns os meios e o ambiente de que precisam.)
O meu patrão agora faz cálculos complicados. Diz que 22 horas de aula equivalem agora a 1100 minutos de trabalho, por isso equivalem a 24 tempos de aula de 45 minutos cada. Por isso, o professor deve cumprir mais 2 horas de trabalho…
Por outro lado, as reduções previstas no ECD devem reverter a favor da escola e não do descanso do professor, por isso vão servir para o desempenho dos tais cargos – salvo algumas excepções – de antigamente davam reduções.
Mas façamos algumas contas um pouco mais complicadas, aplicando-as ao horário antigo, para ver se as contas simples do meu antigo patrão estavam correctas.
O calendário do ano lectivo contemplava cerca de 32 semanas de aulas nesse tempo. (As 20 semanas restantes estavam distribuídas da seguinte forma: 2 semanas de interrupção no Natal, outras 2 na Páscoa. Mais 4 para as férias de Verão, e 12 para os Exames – 2 Chamadas em Julho, 1 em Setembro -, incluindo prazos para a correcção e para as Orais, e ficava completo o ano civil.)
Com um horário de 22 horas semanais de aulas, a uma média de 3 aulas por turma ou um pouco mais, um professor tem provavelmente 6 turmas, num total de 150 alunos (a 25 alunos por turma).
No mínimo, cada turma deve realizar duas provas de avaliação por período, embora o mais vulgar e mais desejável seja que os momentos e formas de avaliação sejam mais frequentes e diversificados.
Por isso, ao longo do ano, no mínimo, cada turma deve realizar no total 6 provas de avaliação, o que obrigaria o professor a elaborar, para as suas 6 turmas, 36 provas de avaliação ao longo do ano. Suponhamos no entanto que, pelo facto de ter turmas do mesmo nível de ensino, o professor aplica a mesma prova em várias turmas, o que lhe permite diminuir o número de provas a elaborar para metade, 18 provas portanto. A elaboração de cada prova demora talvez de duas a três horas, o que equivale a cerca de 1 hora e meia por semana de aulas.
Entretanto terá de corrigir pelo menos 900 provas de avaliação (6 por aluno) ao longo do ano. Cada prova demora talvez no mínimo 5 a 7 minutos a ser corrigida, o que representa cerca de 3 horas por semana de aulas.
Por outro lado, no mínimo cada turma tem 3 reuniões de avaliação, com uma duração de hora e meia ou duas horas, o que totaliza cerca de 1 hora por semana.
Assim, só em avaliação um professor deveria despender pelo menos cerca de 5 horas e meia por semana.
Claro que um professor não pode leccionar sem despender algum tempo, muito tempo mesmo, a preparar as suas aulas. Digamos que o estudo/actualização das matérias levem 1 hora por semana e por turma. Chegamos a um total de 33 horas e meia. Pelos vistos o meu antigo patrão não estava muito enganado…
Suponho que talvez o meu patrão de agora saiba fazer contas melhor que eu. Talvez tenha razão ao mandar que os cargos sejam desempenhados nas horas lectivas de redução previstas no artigo 79.º do ECD. Tenho mais dificuldade em aceitar que agora as antigas 22 horas sejam 24 tempos. O que acontece é que os minutos de intervalo deixaram de ser contados como minutos de trabalho.
O professor poderá aproveitar esses minutos para ir tomar café, compor a maquilhagem, ler um pouco, fazer telefonemas pessoais ou qualquer outra actividade de lazer que possa fazer no seu local de trabalho quando não está a trabalhar…
Nos intervalos e logo que termina a aula o professor deixa de estar a trabalhar. Por isso, não deveria, por exemplo:
- Verificar se os alunos se comportam adequadamente nos corredores
- Ir ao Conselho Executivo resolver questões de serviço
- Ir à Secretaria resolver questões de alunos
- Ir ao PBX fazer ou atender telefonemas por motivos de serviço
- Ir à Reprografia pôr ou buscar quaisquer fotocópias
- Atender alunos
- Atender Encarregados de Educação
Lembre-se disto, Sr. Encarregado de Educação, da próxima vez que precisar de “apanhar” o Director de Turma do seu filho, pessoalmente ou pelo telefone, fora do horário de atendimento que lhe foi comunicado!
DISCIPLINA
É bem conhecida a facilidade com que os portugueses fogem às suas responsabilidades – veja-se o comportamento na estrada e a fuga aos impostos – e a responsabilidade parental não é excepção. Basta verificar que muitos pais culpam a escola pelos palavrões que os filhos dizem em casa e pelas suas atitudes perante os pais… Na verdade, deveria ser ao contrário, deveríamos responsabilizar os pais pelo comportamento dos filhos na escola e em qualquer outro local. De facto, os alunos que se “portam mal” são geralmente aqueles aos quais os pais não transmitiram o respeito pelos mais velhos e pela autoridade.
Que sentiria, Sr. Encarregado de Educação, se o seu filho fosse expulso de uma aula apenas por estar a balançar a cadeira em vez de a manter na posição correcta?
Provavelmente sentiria que o seu filho tinha sido vítima de uma injustiça! (Talvez até pensasse que haveria outros alunos, na mesma aula, a fazer bem pior sem serem castigados…)
Pois.
Que sentiria então, Sr. Encarregado de Educação, se recebesse um telefonema informando-o de que o seu filho se encontrava no hospital com um traumatismo craniano por ter caído para trás enquanto baloiçava a cadeira durante uma aula?
Ou se o seu filho chegasse a casa magoado devido à queda de um colega que baloiçava a cadeira durante a aula?
Pensaria, é claro, que o professor do seu filho era demasiado permissivo e que as aulas eram uma autêntica “rebaldaria”!
Pois é.
Os professores são demasiado rigorosos até ao dia em que acontece um acidente. Nesse preciso dia foram demasiado permissivos!
PROGRAMAS
Os alunos mais conscientes e auto-críticos sentem que já ouviram falar de tudo mas não sabem nada de nada.
Os outros, Deus os abençoe, fazem-me lembrar um velhote que conheci na aldeia que encantou a minha meninice: o Sr. João “da Macaquinha” (nunca lhe conheci o apelido) que declarava, seguro, a quem o quisesse ouvir: “Eu sei tudo! Só me falta saber ler!”
IVM
Pois é, Isabel. Estás, em definitivo, a ficar velha para essas coisas… Ou melhor, a ficar já um pouco desgastada… puidinha…
Vê se recobras na horta, na natureza, a energia que todas as sanguessugas te roubam! E coragem, só faltam uma data de anos para a reforma! (Isto é dito com muita amargura, garanto-te!)