Acabei hoje este livro, que foi um dos meus presentes de Natal “legíveis” deste ano. Nunca tinha lido nada de Miguel Esteves Cardoso, e adorei. Na verdade, adorei algumas “aventuras” mais do que outras, porque o livro é composto por uma colecção de crónicas – aventuras – escritas n’O Independente entre 1988 e 1990, era então o autor director deste jornal.
Apesar da vintena de anos que nos separa da altura em que estas crónicas foram escritas, a maioria delas, senão todas, são perfeitamente actuais e por vezes hilariantes. Traça o cenário político e social português da altura, que parece ter permanecido inalterado em muitos aspectos. Quanto muito, tornou-se ainda mais português.
Deixo-vos o prefácio que deixa a pensar (e é uma das partes mais sérias do livro).
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humana vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha da página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma ‘iniciativa’, que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.
É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas – sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades – é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor – são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.
É tão fácil ser rebelde. Fica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.
Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salva-las desse destino é a coisas mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que ‘salvaguardar’? É mais fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.
Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como galinhas. O difícil é continuar.
Este livro é uma série de começos contrariados. Tem muita mentira, muito desespero, muita invenção. Mas tem também uma vontade. A vontade que tem é de cegar perante as luzes da nossa idade – o elogio do eu e da sua expressão – para reaver os sons e os cheiros das coisas que duram. O amor, a Pátria, a amizade, o sangue, o pão. É nestas coisas que acredito. Isto é mesmo verdade.
Não estou a brincar. Estou arrependido. A minha função não é criar – é presenciar. Não é tanto ser esperto, como despertar. Fico feliz, não quando invento, mas quando descubro. A minha missão não é achar, no sentido de quem opina. É achar no sentido de quem encontra. Não é abrir nem fechar – é tentar ver e querer revelar. É assim que a honra do jornalismo é mais nobre e antiga do que hoje é moda pensar.
Sou conservador não por natureza, mas por convicção. Infelizmente, há uma diferença. Quem escreve tem a obrigação de achar uma verdade. Nesse aspecto, algumas destas crónicas – sem dúvida as menos divertidas – saíram bem. Não foi sorte nem feitiço nem jeito. Foi um trabalho que eu tive. Foi qualquer coisa – por muito mesquinha e muito enganada – que eu continuei e que hoje me orgulho de continuar.
Miguel Esteves Cardoso
Isaa.. Leste em formato papel ou digital? Já tinha visto este livro aqui no teu blog e tinha-o gravado na memória para ser uma das próximas leituras. Vou fazer a pesquisa :)
Beijinhos
É em papel. :) Acho que tanto tu como o F. iam gostar, se quiseres emprestado dou-to na Sexta. :)
Gostei imenso de ler este este excerto quando o publicaste! Na altura em que foi então, identifiquei-me muito com algumas coisas que ele diz.
Emprestei o livro, tem-no a R., mas quando voltar empresto-te, se quiseres. :)
A minha arqui-inimiga, Mrs R. (dito só “R” dá um certo ar de james bond =P)
Gostava muito de o ler sim =), mas só aceito livros teus quando acabar o que me emprestaste há muuito tempo
Combinado! :)